O pássaro (que sou)
1. Prólogo em soneto.
Em que ninho nasceu o que se chama, com imensa vanidade, de Eu?
O esquecimento que se multiplica em um duplo esquecer:
Causando a ânsia que é, assim, o viver.
Cria a crença da diferença entre mito e verdade
Faz fascinantemente imperceptível a frágil realidade
Gera a sensação mais plena de escolha:
Atabafando com véus de razão quão turva é a bolha
Cuspindo verdades em imagens em alta velocidade
em deliberada, ao pensamento, ininteligibilidade
Aí, neste ninho nasceu uma pequena lembrança do eu:
Nasceu pássaro sem asas, filho da obediência
Cresceu no desconhecimento da própria potência
Aí, neste ninho nasceu uma pequena lembrança do eu:
Nasceu sem consciência de sua própria natureza
Cresceu sem conhecimento de sua inata fraqueza
2. Capítulo primeiro.
Quem é o pássaro sem asas?
Fruto de tal ninho não longe poderia explorar-se
em suas vastas possibilidades de devir
Não obstante, cada passo além era apagar-se
Movendo-se em um ciclo, a si, de
revir
sem nunca poder ser outro, sem jamais poder ter mais
sem nunca poder encorajar-se a ser seu próprio Arrais
Um constante desejo, cego, de apagar-se
Fruto de uma identidade que se esgueirou
pelos lapsos e penetrou fundo n’alma
Ali medrou ao ponto de fazer parte do eu,
Fê-lo pôr-se, então, em sua palma,
visto que, este, não pode, com serenidade, arrancá-la
visto que, este, não pode mais simplesmente cortá-la
sem com isso extrair parte do próprio eu.
Ao arrebatar por completo produzira em si
a dor mais intensa que jamais sentiu,
tão mais intensa que a dor puerperal
Deste modo causando marcas tão indeléveis, ali,
que jamais ser-se-á impassível ou bravio
ser-se-á algo acolá do que é o normal
3. Capítulo segundo
O que é a profecia do nobre devir?
Tais vaticínios causam temor ao braço mais forte
Fazem mudo o brado mais retumbante
Cerra os dentes mais famintos e afiados para o corte
Rechaça o mais temerário semblante
Porém, seu resultado pode salvar o ente mais moribundo
Só este é o esforço que pode ter o alcance mais profundo
Sem deixar-se às moscas
Sem deixar-se levar pelo vento
Sem deixar-se produzir como outra das estruturas ocas
Sem deixar-se produzir como um ente frágil ao relento
Punho erguido.
Alma em brasa
Assim pede-se por asa
Assim o limite é abolido
Recusa da estabilidade
Trucidação do fixo
Assim faz-se erguer a personalidade
Assim desloca-se o antigo eixo
Elevando o poder-ser
Elevando do indefinido
Elevando-se o ente que se é para lá do ter
Elevando-se o ente ao seu potencial infinito
Atenção a que nada aqui é certo nem definido
Não se põe qualquer tipo de molde que dite o ser
Fala-se de anti-moldes sem qualquer risco pré-emitido
Tudo aqui está na multiplicidade de vir-a-ser
Que é mais belo que qualquer escultura padrão
Qualquer desenho fruto de mera reprodução
4. Capítulo último
Radiante ou Opaco? Aurora e ocaso?
Entre acidência e pulsão
Entre desejo primaveril
e o que há de mais vigoroso
Nem positivo nem negação
Nem bom nem sequer vil
Só á certeza no pontuoso
Assim sendo, não há muito que rimar
Não há muito que prever
Depende-se do real querer
Sem certeza do que, após, haverá
Nem mesmo a garantia de chegado
Não há caminho exato a seguir
Não há verdade a se anuir
Só o ato poderá apontar o errado
Assim sendo, se finda aqui
sem buscar a resposta final
sem ditar qualquer moral
Apenas um intento de mostra que há um outro de si