Carta a um grande inimigo
Uma imagem, atravessando-me a retina, grava-se na lembrança: é janeiro e o ventilador está desligado. Sob teu casaco aí, do outro lado do Atlântico, onde a neve se acumula no beiral da janela, pode não te parecer algo digno de uma carta, mas aqui neste úmido vale tropical este quadro soa mais do que estranho.
Um velho amigo um dia disse-me que por aqui não há algo como "quatro estações", mas sim, São Pedro e sua bipolaridade. Engraçado, porque agora me parece que o tal santo simplesmente enlouqueceu de vez, ou perdeu de vez sua memória e cobriu esta pequena cidade com um clima meio torto para esta época do ano. Não que eu me entristeça com isto, pois é muito bom poder respirar sem que o ar cozinhe-me os pulmões, ou caminhar pelas ruas do centro da cidade sem que a pele asse como um doce em banho-maria.
Acredito que tua curiosidade adoraria encontrar-se como essa informação, mesmo que não troquemos mais muitas palavras e que o teu silêncio inunde meu peito e preencha a distância entre nós. Pois sei que se vierdes a ler estas linhas, seja lá teu estado espírito ou condições de tua saúde, algo de regozijoso borbulhar-te-á no corpo e marcar-te-á no rosto uma leve parábola ascendente do centro aos cantos dos lábios, um "Grinsen", como tu adoravas explicar-me, quando fazias diferenciar dez tipos de expressões faciais que eu ingenuamente reduzia ao verbete "sorriso".
Bem, com estas frases, mais ou menos vazias, eu não quero sobrepor qualquer coisa que seja, ou mesmo conjurar a ponte que, agora taciturna, liga-nos. Apenas aceno deste lado da cerca; um aceno amoral e amoroso, de saudade talvez, mas alegre pelo passado-em-mim e pelo que se é no que há: o agora.
Abraços,
Augusto
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