PAISAGEM
Sentado em uma poltrona, com o livro aberto, aproximei meu nariz das páginas tocando-as lá onde elas se curvam e se encontram e somem, como a luz que é dragada sem piedade pela gravidade faminta dum buraco negro.
Com o nariz bem próximo inspirei o odor que aquele papel novo cor de creme exalava. Um livro recém comprado. Seu cheiro inesquecível, inconfundível...
Inspirei outra vez enchendo os pulmões até quase explodirem e deixei o perfume excitar-me ao sair levemente com o ar que eu expirava de modo lento, calmo e regozijante.
As letras que tão pouco dizem aos olhos nada podiam dizer a meu nariz. Porém, nos sulcos daquela folha porosa, eu recolhia informações infinitas. Podia fazer viagens para outros tempos, podia recriar outros espaços, desenhar lugares utópicos, compor lugares outros…
Podia deleitar-me como se sentisse meus músculos sob o efeito de álcool e meu cérebro sob o efeito de ácido. O infinito me abundava. E eu fazia parte dele.
Ao mesmo tempo, eu me esvaziava. Meu Ego se desfazia. Eu era nada. Enquanto aquele infinito me habitava. Eu, nada, infinito… Ali, dissolvidos… Miscível, eu era infinitamente nada. Éramos ali o agora vazio. Sem ser, sem limites, sem ter. Nada. Caos.
Esse caos que agora eu era. Essa caos, fluxo sem fim, rio torrente, torvelim sem corpo. Esse corpo sem alma. Essa alma sem forma. Essa pura energia que se poderia tornar qualquer coisa.
Nesse caos que eu era, podia ouvir-me como ondas do mar em uma praia. Podia tocar suave a areia fina escorrendo-me sobre ela. Podia infiltrar-me nela, a passar entre os grãos, molhando-a. Desfazendo-me onda a encharcar a praia até a saturação da areia. Transbordando-a. E então voltar, água, ao mar e uma vez mais ser onda.
Podia cheirar-me menos como matéria, água, e mais como energia, onda.
E assim como a água inundava e possuía e misturava-se como a areia, eu sabia-me inundando e atravessando a água e dando a ela vida enquanto ela dava-me corpo, miríade de corpúsculos. Era corpo e força, vida e matéria. Era tudo aquilo que se move mesmo a estar no mesmo lugar. Tudo aquilo que vibra mesmo à beira de congelar. Tudo o que jamais tocará o zero absoluto. Eu sentia-me lá…
Todavia, lá foi-se afastando-se. Paulatinamente as imagens foram ficando turvas e os odores difusos e os sabores tornaram-se pálidos e tudo quedava tão longe que não se os podia mais tocar... Tudo foi indo até amalgamar-se ao esquecimento. Ao nada. Ao caos…
A porosa página cor de creme foi se afastando do meu nariz. Nela o cheiro de livro novíssimo, agora fraco, ainda resistia às últimas aspirações daquele corpo que se distanciava na aceleração constante de um corpo que caía inane e inerte sobre a poltrona. Caía um corpo. Um corpo morto.