sábado, 14 de janeiro de 2017

Um movimento em quatro atos, ou...

Ao alto em quatro movimentos

I – A subida

Pus-me a caminhar por uma trilha; uma trilha parcialmente já traçada pelo passado, parcialmente trilhada por mim, no próprio caminhar; porém em quase nada
marcada pelo futuro, quase sem meta.

A certas alturas, a ingremidade exigia-me o uso das mãos, era preciso escalá-la; ainda assim, segui-a.

Após não mais que meia hora de subida o alto da montanha desvelava-se – não apenas enquanto uma miragem que me impulsionaria a subir, mas como materialidade que afetava meus cinco sentidos: eu via o sol delinear formas nas rochas e cortar sombras no solo, ouvia o vento ciciar ao raspar rochas e depois tatear a pele de minha face e arrastar o cheiro da relva quente e dos arbustos ressequidos até mim e o depositar em minha língua partículas da paisagem ante mim.

II – Um olhar

No cume, escolhi a pedra mais alta, a fiz de mirante para admirar a paisagem.

Olhei o céu, mas sem a lua ele não importava, não me interessava em seu ar etéreo.

Olhei o mar, ele chamava-me; meu olhar podia cruzá-lo e chegar às terras longínquas a vários fusos horários dali, terras além-mar, no futuro, que se tornavam presentes, eu não só as vias, eu as podia apalpar; podia também atravessar o mar, sondar o fundo de seus abismos, conhecer suas riquezas íntimas, nele imergir e ouvir seus sórdidos segredos sussurrados.

III – Um mergulho

Contemplei o mar em sua plenitude, imensidão, soberania; contemplei-o num silêncio respeitoso e poderoso.

Meu corpo sentia algo atravessá-lo, era quase domado por uma pulsão – talvez não fosse todo o corpo, talvez se tratasse mais precisamente de um devaneio: mergulhar naquela colcha azul marinho; lançar-se naquele doce lençol cerúleo suavemente fremido ao toque do vento.

Não havia lógica, cálculo ou racionalidade; apenas uma pulsão de atirar-me cego, mouco e mudo ao encontro daquelas águas.

Fechei meus olhos, senti a brisa e imaginei o vento impondo resistência a minha queda e senti o suor do meu corpo ser lavado pela água e meu calor ser varrido pelas ondas nesse mergulho sandeu.

IV – Outro mergulho

Abri os olhos, quase acordando de um sono; virei-me a contemplar a densa floresta que cobria o relevo – uma espécie de oposto complementar ao mar: um verde matizado que formava um colchão macio ao olhar do qual o vento sutilmente trazia o convite a outro mergulho.

Imaginei meu corpo em queda livre submergir no folhame e desassomar entre o arvoredo e ser devorado por aquele víride pélago e ali esvanecer-me – tornando-me nada: nada do que eu era ou fora e por um átimo eterno, lapso de ser da identidade (ou o inverso), poderia ascender.

Respirei fundo aquele ar e o expirei lentamente, guardando em mim pouco mais que vagas lânguidas lembranças.


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