quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Órgão sem corpo (3)

Uma pele

Era como olhar-se com os próprios olhos, mas sem um espelho. Diretamente ver-se. Com minhas mãos eu tocava meu braço. Mais precisamente, minha pele tocava a si mesma, percorria-se, dobrava-se sobre si e nessa dobra sentia-se.

O tato, a pele, pode o que a visão não pode, perceber sem distância, olhar sem nada como intermediário. Percepção oscular.

E assim, pele com pele, esquadrinhando-a numa autobiografia dérmica, eu mapeava as curvas, as rugosidades, as saliências, as reentrâncias, os outeiros, os pélagos e as fontes dermais. Era como um livro de contos, um diário cheio de histórias ‒ mais ou menos secretas. Eram crônicas secretas pelos poros. E eu ia lendo-as. As alegrias marcadas ao lado dos olhos em sorrisos repetidos, porém únicos, o sulco por onde corriam as várias tristezas em forma de lágrimas, a densidade da barba de quem não era afeito a certos cuidados, a infância que queda em uma cicatriz no joelho, os pigmentos que inscrevem a juventude nas tatuagens e as tatuagens que contam do gosto pela vida.


Entretanto, nem tudo estava ali fazia tanto tempo, nem tudo ali ficaria por muito tempo e justamente isto era mais profundo, justamente isto marcou-me. Ali, seguindo pelo braço, ombro, pescoço e depois costas, ali, na pele, eu lia: o amor deixa marcas no dia seguinte.


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