quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Historietas modernas

A mulher louca — Não ouvistes falar daquela mulher louca que em plena manhã acendeu uma lanterna, correu ao shopping e pôs-se a gritar incessantemente “Procuro o Cupido! Procuro o Cupido!”? E como lá se encontravam muitos daqueles que não criam em cupidos e noutros demônios, ela despertou com isso uma grande gargalhada geral. “Então ele está perdido?” — perguntou um deles. “Ele se perdeu como um bebê, um querubim?” — disse um outro. “Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou numa nau de insensatos? Exilou-se?” — gritavam e riam uns para os outros. A mulher louca lançou-se para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi o Cupido?” — gritou ela — “Já vos direi! Nós o matamos – vós e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar do amor? Quem nos deu a borracha para apagar os céus? Que fizemos nós, ao desatar a Terra de universo infinito? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sonhos? Nós caímos continuamente de nós mesmos? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existe ainda ‘dentro’ e ‘fora’? Não vagamos como que através de um finito ilimitado? Não sentimos na pele o sopro do vácuo e no coração o peso do mundo inteiro? Não se tornou mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos barulho dos coveiros a enterrar o Cupido? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? Também os deuses apodrecem! O Cupido está morto! O Cupido segue morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassino entre os assassinos? O mais antigo e o mais sagrado que o mundo até então possuía sangrou inteiro sobre os nossos punhais. Quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que rituais expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza deste ato não é demasiado grande para nós?  Não deveríamos nós mesmos, então, tornarmo-nos deuses para ao menos parecer dignos deste ato? Nunca houve um ato maior e quem vier depois de nós pertencerá, por causa deste ato, há uma história mais individualizada e internalizada que toda a história até então!”. Nesse momento silenciou a mulher louca e novamente olhou para seus ouvintes. Também eles ficaram em silêncio olhando espantados para ela. “Eu venho cedo demais.” — diz então — “Não é ainda meu tempo. Não chegou aos olhos dos humanos esse acontecimento. Seria eu um trovão a que anuncia o próprio relâmpago? Poderia o ribombo do corisco lhe anteceder? Chego tarde demais, então? Chego quando já não há mais tempo nem espaço, nem fragmento de memória para recordar do que um dia foi Cupido? Venho quando, sobre as ruínas de seus templos, já se ergueram arranha-céus de esquecimento?”. Levada para fora e interrogada, limitava-se a responder: “O que são ainda os sonetos e as tragédias gregas, senão réquiens a Eros? O que são os museus de arte, senão os mausoléus e túmulos de Cupido?”.

 

Escólio: os saberes psíquicos, a invenção do ‘eu’ — neste momento em que um nome (ou um sobrenome) deixa de ser algo nobre, seja porque exclusivo a reis e rainhas, seja porque ligado a figuras  heroicas, e passa a ser algo amplamente difundido, neste momento em que individualização deixa de ser restrita às figuras memoráveis e torna-se uma (quase) incontrolável documentação dos sujeitos em suas batalhas identitárias — ou invenção do ‘ego’ (e suas faces supra e infra-egoicas), a criação da subjetividade, o fim da alma e a ascensão do reinado da psiquê mataram o amor enquanto Eros, enquanto figura do Cupido, enquanto força-entidade externa que move (para fora, que e-mociona), que atravessa com flecha; agora o amor vem de dentro de algo que só nós modernos somos capazes de ver, dizer e entender — o eu —, o amor advém e habita a psiquê e não é nada fora dela, salvo quando estende-se num tênue fio (feito seda, feito teia de aranha) de uma subjetividade até outra, sobre o apodo (desavergonhado) de ‘relação’ (amorosa); o amor só tem alguma exterioridade quando ‘conecta’ dois sujeitos psíquicos, naquela estranha coisa que se costuma chamar ‘intersubjetividade’.

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