segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Um ente...

Entre uma taça & a couraça

Ela decidiu fechar os olhos para tentar sentir o frio da taça em sua mão. O frio do cristal, em contato com o frígido gelo que flutuava num líquido rosado semitransparente. Mas seu corpo era mais frio, seu corpo era gélido, um composto inorgânico de matéria negra no interior de um moribundo cadáver de átomos de carbono perfeitamente combinados segundo uma ordem irracionalmente caótica & irrisória demais para explicar a vida em um corpo como aquele.
Na tentativa de encontrar alguma sensação, alguma exposição do calor da vida em si levou o copo à boca, virou-o de forma a poder ingerir todo o líquido em seu interior.
De uma só vez o líquido desceu, garganta a baixo, queimando-a & por fim dissipando-se no infinito de seu estômago. A sensação cortante lhe fez morder fortemente o copo, mordeu o mais forte que pode. Mordeu a ponto de o fino cristal partir-se, fazendo diversos talhos na parte superior & inferior de seus lábios. Talhos finos, longos & profundos. Talhos rápidos & precisos.
& entre a carne de seus lábios & o cristal da taça espatifado, misturava-se o sangue. Sangue vermelho. Sangue intenso, vivo & voraz!
Sangue que em segundos jorrava-lha à boca, banhando-a de um rubro manto. Mas não foi dor que lhe transbordou junto ao sangue. As hemácias vazavam-lhe aos vasos carregadas de euforia, sobejavam uma satisfação ignota, nova & incrivelmente impar.
Como se presa a um cenário onírico, ficou, ali, refém desta sensação durante minutos, vários & longos minutos. Minutos que seu cérebro não saberia contar. Seu cérebro pôde apenas titubear entre um nada incerto & certo nada em que todas as palavras cabem, mas nenhuma, nem a soma de todas o completa, o preenche.
& ao fim, ao dar-se conta de si, ao olhar para fora de si, percebeu seu corpo estendido ao longo da sala de estar, por sobre o carpete, ao lado de um sofá branco, importado, fino material.
Ao seu redor, cercando-lhe, havia um grande número de pessoas, dentre as quais as caras variavam entre desprezo, nojo, espanto & desespero. Algumas mãos tapavam os próprios olhos, outras os olhos ao lado, outras mãos iam das laterais da cabeça à boca. Aos seus ouvidos a contemplação de gritos horrorizados mesclava-se com resmungos de indignação, balbucios de escárnio & passos frenéticos. Por fim sentiu a sua visão turvar-se & escurecer-se até ser totalmente coberta por um véu negro, negro como a matéria de seu coração, negro & frio como seu interior.

Nenhum comentário: