segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Nem é tão

Vida indigna

O ônibus nem é tão lotado
O salário nem é tão minguado
O trabalho nem é tão alienado
O sono nem é tão pouco
O amor nem é tão amargo
O horário nem é tão ruim
O almoço nem é tão insosso
O quarto nem é tão pequeno
O tecido nem é tão roto
O tênis nem é tão velho
O corpo nem é tão dolorido
O cérebro nem é exausto
O pão nem é tão caro
O caminho nem é tão longo

Mas a vida ainda segue indigna,
Exalando miséria, 
A alma ainda vive a dor do não realizado,
Da felicidade parca
E da paz impossível

Sequidão

Chove

Meus pés molhados
    em meias molhadas
    dentro de um tênis molhado
    em calçadas molhadas
quando chove.

Minhas palavras secas 
    em minha garganta seca
    entre olhares secos
    numa vida urbanamente severina
quando chove.

Meu olhos molhados
    poderiam regar
    meus sonhos ressequidos
    de um dia não termos
    uma vida tão árida mesmo
quando chove?

Nascimento da Modernidade

Punir sem vitimar

Pusemos fim ao espetáculo do suplício
e então nasceu a Modernidade

Nasceu com ela também a prisão e a fábrica e a propriedade privada e o capital

Nos críamos mais humanos, então,
por criarmos esse mundo diferente do suplício cristão,
em que o corpo deveria padecer até expiar os males
– eis a economia da extorsão dos pecados pela dor

E, mais humanos, passamos a dizer e repetir
até crer e sentir que a morte é pior que o sofrimento, 
que morrer derradeiramente é indesejável e imperdoável,
enquanto sofrer 
– essa pequena morte cotidiana que não mata,
mas lesa corpo e alma –
dia após dia,
noite mal dormida após noite mal dormida,
é santidade
– eis então a Modernidade

E criamos a escola e a fé e o espetáculo e o amor e a família e o abstrato,
para que creiamos, 
dia mal vivido após dia mal vivido,
noite após noite,
no mantra cotidiano:
viver é melhor que findar
ou
vale a pena seguir sofrendo sem paraíso terreno a pôr fim à dor,
ou
a vida em miséria é desejável à morte – esse pecado mortal –
ou
sofre alegre pela dádiva e não arrisca tua própria vida por uma vida mais digna



quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Num café

 aleaiactaest

Não controlo minha vida
    mas o tento
    porque não há outra
porque não me resta senão a liberdade amarga de encenar decisões sobre mim

Iludo-me nesse jogo
    entre escolher o que visto e a refeição que compro
    entre andar a pé ou dormir de cansaço
    entre chorar de tristeza hoje ou adoecer de ansiedade amanhã

Não controlo minha vida
    – o dado foi lançado –
mas o tento
porque é a sina que me cabe

Por que
então
haveríamos de tentar controlar as vidas uns dos outros
e chamar esse ato
às vezes de direito ou justiça
ora de destino
e não raro de amor

sábado, 19 de abril de 2025

O Buquê

                                                          Jacques Prévert

O que você faz aí, menininha,
Com estas flores recém cortadas
O que você faz aí, jovem menina,
Com essas flores, essas flores secas
O que você faz aí, bela mulher,
Com essas flores que murcham
O que você faz aí, velha mulher,
Com essas flores que morrem

Espero o vencedor.



quinta-feira, 3 de abril de 2025

Revisitando

Os corpos e o mar

Quando Baudelaire falou das riquezas íntimas do mar
esqueceu-se de falar que em suas águas também se escondem
corpos negros
    que não chegaram a atravessar o oceano
corpos negros
    arrastados
    roubados
    forçados
    agrilhoados
corpos negros
    lançados
    descartados
    atirados
    às profundezas do Atlântico
        sem cântico
        insepultos
        sem rito
        velados
e no entanto
    voilà
séculos
    numeráveis
    inomináveis
em que o mar os abraçou sem piedade nem remorso
    tanto amamos a carnificina
    e a morte
    tanto odiamos a diferença
    e o outro
negros
corpos

Tu

Pediste-mo
 
Pediste a mim
e dei o que eu tinha de mais precioso
então
não sei por que
o pisaste
e
deixando-o em pedaços
fingiste que nada foi
que nada era
e eu?
juntei os cacos desse amor
e fui-me.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Sobre um poema e alguns versos

Sobre quereres, precisares e poderes.

Queria escrever-te um poema.
Precisava escrever-me uns versos.
Parte de mim, começou a compor um fado,
outra parte, uma peça para flauta transversal 
na qual a melodia era ora uma cama para teu olhos, ora, uma onda, na qual tuas palavras de amor, misturadas a teus gestos de carinho, rebentavam na rocha dura de meu coração.
Talvez leve tempo até a rocha perder certas arestas, mas com certeza nela, alimentada pelo que a água carrega,
nasce vida,
cresce vida, 
segue vida.
No fado, às lagrimas, uma voz cantava que mesmo a solidez se desmancha no ar, que a eternidade não pertence nem ao amor, nem à solidão, mas esse fado, querendo ou não, tinha de confessar que do amor, dos amores, em perpétua transformação, nasce algo que transcende sua própria finitude.
Queria escrever-te uns versos.
Queria escrever-me um poema. 
Queria me desculpar, queria te amar sem erros, mas não sei ser sem erros, não podes tu também não tê-los – e há nisso certa graça e certo desafio...
Queria escrever-me uns versos em que eu me perdoasse, em que eu aprendesse que amar é um caminhar incerto, em que lembrasse que o amor só faz sentido quando faz, no fim das contas, sorrir e ser maior.
Queria escrever-te um poema em que confessava que meus medos não só me levam a agir estupidamente, mas também a aprender a dançar com eles e deles rir.
Nesse poema eu te diria que me tens ajudado – a ser mais leve, mais risonho, menos calado, mais corajoso, menos egoísta e tantos outros mais e menos - e por isso: obrigado.
Eu precisava escrever-me um poema em que arrancaria de mim as inseguranças que me tornam o pior de mim, mas, apenas tirá-las, abriria lugar para outras novas tomarem seu lugar e novamente as mesmas retornarem.
Esse poema, quem sabe, seria um soneto onde cantaria sobre os amores e amizades que afastei, mas não me condenaria por isso e, sim, faria rimas com a fortuna de seguires me amando e a certeza de que isso não é pura sorte - embora o caso tenha lá sua parte -, mas efeito do ritmo silábico de meus gestos de amor e da cadência de meu cuidado em te amar como mereces.
Precisava escrever-te uns versos em que te sentisses livre, abraçada e contente, se possível ao meu lado, mas onde também te pediria, humildemente, alguma paciência, porque, de verdade, quero receber teu carinho, teu olhar lascivo, teu abraço, teu colo, tua mão em meu corpo enquanto tens minha mão em teu corpo, meu colo, meu abraço, meu olhar lascivo, meu carinho.
Se eu escrevesse esses versos em papel, a tinta o borraria por já não poder mais absorvê-la; as letras formariam palavras, mas as palavras talvez ganhassem mil sentidos e o poema que eu compunha tornar-se-ia uma música, dez músicas, mil músicas em uma só.
Talvez eu não saberia começar ou terminar tal poema, talvez eu desistisse desses versos porque
as lágrimas
ou o riso
ou os dois
é quem realmente seriam a poesia e as palavras se tornariam garatujas.
Talvez o poema ficasse piegas e de tão péssimo gosto que não tocaria nenhum outro coração, mas, no fundo, queria e precisava escrever-te-me esses versos, esse poema, porque ele pulava em meu peito, ele saltitava em minha mente feito um sabiá, que salta de galho em galho, chilreando uma ode de amor.
Eu queria escrever esse poema com versos sobre meu amor – por ti, por mim, por nós –, mas o que posso dizer nesse momento é: eu te amo.