quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Órgão sem corpo (1)

Um nariz

Lembro-me ainda, como se este evento se houvesse gravado em minha retina feito cristais de prata formados no contato com a luz. Uma fotografia acinzentada, mas intensa, no álbum de minha memória.

Lembro-me da sensação de alívio ao atravessar o umbral da biblioteca que transportava a um reino de ar frio ‒ quase gélido ‒, muito bem-vindo dado o calor que fazia naquele dia. Fazia? O umbral quase apagara da memória aquele calor não fosse o prazer advindo do contraste entre os ambientes. Todavia, não é essa a essência da lembrança.

Lembro-me de, extasiado pelos efeitos do ar-condicionado, vê-lo pela primeira e única vez. Fora exatamente quando seguia escada acima em busca de um livro (cujo título ou nome do autor pouco importa aqui lembrar). Enquanto subia os degraus, meus olhos (de cloreto de prata) foram atacados por aqueles contornos que desciam lentamente (banhando-me de luz). Ali, vindo na direção contrária, a me hipnotizar, levemente adunco pouco abaixo da raiz, fino no dorso e alargando-se levemente no ápice, tinha pequenas narinas e asas bem arredondas ‒ quase esféricas diria. Ali, aquele nariz.

Lembro-me deste momento passando-se em câmera lenta. Meu olhos, tentados pela beleza daquela forma, tentavam captar o máximo de detalhes; minhas retinas eram apenas o receptáculo daquela visão; e eu tentava apenas contemplá-la, como quem experimenta a impotência diante de um grande obra, como quem se estupefaz diante da magnitude de um quadro como o d'A Batalha de Alexandre em Isso; silenciado observei.

A Batalha de Alexandre em Isso (Die Alexanderschlacht)
Albrecht Altdorfer, 1529 .
Lembro-me também de quando meus olhos voltaram a estar em suas órbitas, quando também minhas retinas foram escurecidas pelas pálpebras e pelo atino da invasão de meu ato sobre aquela obra. Eu devia estar admirando-a com tamanha obstinação que se fosse percebido em minha ação seria no mínimo reprendido pelo olhar assustado daquilo que carregava aquele nariz ‒ se é que havia algo, posto que disso não me lembro ‒ e pela minha moral que conspiraria contra minha inocência.

Lembro-me de procurar a primeira cadeira na qual me pudesse sentar, em seguida, arfar as lembranças recém gravadas daquele evento e senti-las fazerem trepidar minha carne e agitar minha mente. Ainda ébrio pensei em descer as escadas, entretanto, tão logo abri os olhos, dissuadi-me da ideia de libar daquele vinho. Não me cria capaz de sobreviver à empresa de sorver ainda mais daquela mirada quase inenarrável, quase intangível... não fossem os resíduos cristalizados em minha mísera retina.

Lembro-me ainda, se bem que através duma exígua lembrança ‒ dada a abundância do que me fora presenteado naquele dia ‒, daquele nariz.


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