Rabisco em crayon
O barulho da chuva do lado de fora era a trilha sonora desta história, uma história dentre outras tantas, que talvez não lhe faça sentido e que talvez nem mereça sua atenção, mas que mesmo assim é uma história.
Enquanto um mundo todo corria lá fora e um bilhão de coisas passava pela cabeça daquele jovem rapaz, o suor multiplicava-se no seu corpo com a passagem dos segundos e o ritmo que acelerava até alcançar o clímax, o jorro, o orgasmo. Fechou os olhos para perceber-se. Após o despejo do gozo restou ali, não apenas um corpo vazio, mas, uma alma cava, oca onde ressoavam lamentos de um existir incompleto, impróprio e inumano, um existir restrito, vão e suicida.
Então, ele sentou-se e sentiu-se num mar de um nada nadificante, percebeu-se prostrado diante de uma nulidade gratuita da potência do ser, achou-se perdido, o sentido de tudo até ali havia definitivamente se furtado. Tentou, depois, aconchegar a cabeça no travesseiro branco, pressionou-a contra a espuma velha, afundando a cabeça até quase sentir o colchão, porém, o aconchego nem sequer aproximou-se naquele momento, estava desaparecido na imensidão vazia que seu corpo comportava, agora. Uma profundeza escura, estéril, histérica, estreita, estonteantemente estática, estridente, estrondosa, extrema, extrínseca ao ser e extrusiva da vida.
Na tentativa de preencher o vácuo no peito não conseguiu nada senão aumentá-lo, expandi-lo a um tamanho insustentável à leveza do ser. Criou um buraco negro insubsistente à massa da vida, dragando-a à negação da existência, em propriedade do ser. Ao abrir os olhos outra vez percebeu um corpo glacial, sentiu-se num coito com um cadáver, sentiu-se como um necrófilo do romantismo à meia noite em um cemitério e este cemitério era ele mesmo, ele já era um cadáver, ele era frio e morto. Passou a mão pela cama tentando sentir calor, mas tudo o que havia ali eram objetos sem vida, sem amor, sem paixão, imóveis.
Levantou-se e olhou ao redor, tudo o que podia ver eram objetos sem vida, sem amor e sem paixão.
Vestiu-se e saiu do quarto indo em direção à cozinha, deu um giro formando um panorama do aposento. Andou até um dos armários, abriu a gaveta tirando de dentro dela uma faca de cabo preto e lâmina de aço inoxidável, passou o dedo indicador lentamente pelas faces da lâmina, primeiramente na parte superior, depois voltando pela inferior, repetindo o movimento algumas vezes; em seguida encostou a lâmina na parte interior da mão, pressionando o gume contra a palma e, deslizando-o para baixo, pode sentir-se outra vez, pode sentir o metal frio entrar na carne fazendo um risco de sangue na mão. Algumas gotas de sangue caíram no chão, outras ficaram na faca. Olhando fixamente para seu reflexo na lâmina da faca, levou-a a boca, limpando o rastro de sangue sobre a faixa de metal. Passou-a outra vez sobre a língua, mas agora com mais força, queria sentir o aço cortar-lhe e o fio de sangue cruzar-lhe a língua. Engoliu o sangue em sua boca, tentou sentir-se vivo outra vez, mas já era tarde, seu sangue já era frio. Já não havia mais vida naquele corpo, os ossos rangiam e gemiam e clamavam por um fim, a vida estava se exaurindo de cada rincão de seu corpo. Cada órgão, cada tecido, cada célula de seu organismo estava desfalecendo em desânimo.
Entrou no banheiro ajoelhando-se diante da privada, o altar de sua existência medíocre, aspirou, aspirou o cheiro podre que vinha dela, aspirou por algo mais, no entanto a podridão que saía dali era um belo perfume perto da putrefata alma daquele humano, daquele sac à fiens largado na frente da patente. Vomitou violentamente tudo o que havia dentro de seu estômago, uma golfada de suco gástrico, que passou queimando-lhe a garganta, rasgando-lhe a traquéia, porém aquilo não era muito, ali ficou o pouco peso que ainda oscilava dentro de seu corpo. Levantou-se cambaleante, moveu-se calmamente para fora do banheiro, depois atravessando o corredor até alcançar a porta principal. Estaqueou aí, puxou ar arranjando fôlego para ir além.
Saiu da tranqüilidade triste de sua casa, ao abrir a porta, inalou profundamente o gás carbônico do mundo ali. Moveu-se para fora procurando a expectoração última do viver, pondo-se diante do abismo gélido que a cidade é. Sentiu o denso sopro da morte roçar-lhe suavemente a face, enquanto a seda mórbida da noite cobria seus olhos.
Ao longe, uma luz amarela cortou o véu e perfurou-lhe a vista. Sem tentar desviar o olhar, moveu-se alguns passo a frente na direção da luz, para o meio da estrada, em busca do fim.
Um carro vermelho, modelo novo, com freios em perfeito estado de funcionamento, a uma velocidade não muito acima do que a placa, no alto do poste, permitia, golpeou o corpo já internamente moribundo, encerrando a ânsia daquele jovem rapaz, naquela triste madrugada de segunda-feira.