A misantropa
Ela estaqueou no meio da praça, mesmo parada sentia o mundo girar. Girava num ritmo que levou alguns minutos para que se sentisse tonta e, então, tentasse voltar a si. Ao fazê-lo olhou as pessoas ao redor, parecia que para elas tudo se mantinha em perfeita ordem.
Sentou num banco, demorou-se ali algum tempo contemplando as flores do canteiro ao seu lado, passara algum tempo até que se saturasse delas. Mirou o céu, mas não o tinha em mente, seu olhar era de um vazio assustador, um nada angustiante. Passou a refletir sobre si, começou a pensar sobre o que vinha sentindo nos últimos dias, uma sensação plúmbea no peito, que afetava sua respiração, que dopava lhe o olhar, que inebriava sua alma e por fim causava-lhe tremenda insatisfação – pulsava-lhe um desejo suicida nas veias.
Todo este coquetel de emoções havia se agravado nas últimas horas culminando neste passeio pelo parque, num caminhar aéreo e vago, quase que desnorteado.
Assim falava a si “Sinto falta. Falta de mim, falta de atos, de Ethos, de Eros. Falta de erros. Erros que me façam pensar, erros que me façam repensar”.
Poder-se-ia enumerar mil acontecimentos naquela praça, o cachorro atrás da criança, a criança atrás do pombo, o pombo atrás de comida que ciscava o chão, meneava a cabeça em sincronia com os passos, acelerava os passos em fuga da criança até precisar voar. Mas o que verdadeiramente voava era a mente, a mente da jovem vagava para tão longe, mas não para os céus ou para o espaço, voava longe na imensidão vazia de sua alma, no abismo aterrorizantemente inseguro que abrigava em seu peito – de onde vinha aquilo ela fazia nem a menor ideia.
Poder-se-ia enumerar infinitos detalhes, o chão de calçamento quadriculado, alternando entre um preto gasto e um branco sujo, os bancos puídos pelo uso e pelo tempo, todos aqueles brinquedos consideravelmente abandonados pelas crianças, que hoje mais preferiam um jogo virtual. Talvez fosse isto, toda sua vida lhe parecia tão desproposital quanto um jogo deste tipo, tudo lhe parecia, cada feito seu, cada sensação sua, cada toque na face, cada cor das flores, tudo lhe parecia artificial e de uma artificialidade humanamente mórbida.
Toda aquela meditação àqueles sentimentos incógnitos a fazia vasculhar por entre as lembranças o que a causava tal frustração, algum desejo irrealizado, algum sonhos perdido esmigalhado, algum trauma – naquele instante de introspecção assustava-a quão traumática fora sua vida, cada minuto, cada fragmento de memória, cada respiração, toda a sua vida parecia um imenso trauma, trauma a si, trauma às pessoas ao seu redor, trauma ao mundo. Ah, imundo mundo que fora contê-la, maldita prole que ela viera a ser… Ser? Naquela hora, meio-ser, quase-algo, era isso que ela sentia "ser" agora.
O tempo passou sem que ela pudesse, ou mesmo quisesse quantificá-lo. Sua visão fixa ainda ao além-aquém denunciava seu estado meditabundo, sua face inexpressiva escancarava sua depressão, tudo que em sue âmago pesava, vazava-lhe aos olhos. Ainda ali, na praça, estática, apática, sem visão estética ou conduta ética que firmasse seu ser, esta mulher de pouca idade havia, paradoxalmente, se firmado. Havia feito uma irrevogável escolha, havia tomado uma resolução, que a marcaria até o fim de sua existência, de sua tranquila, débil, enfadonha existência na normalidade.
Havia decidido que não iria matar-se, não ia entregar-se tão facilmente assim a mais um capricho de sua alma, sabia que poderia resistir a mais isto. Foi assim, resistindo a saciar o que talvez fosse sua mais sincera pulsão à felicidade, que ela morreu amargurada em uma cadeira, sentada com a boca escancarada esperando a morte chegar, com os remédios impedindo-a de mergulhar em seus devaneios, prendendo-a à racionalidade atroz que a cercava, mantendo-a longe de seu reino de fantasias, sã e salva da loucura que crescia em sua cabeça, dia após dia, reflexão após reflexão. Aliás, disto estava, também, ela salva, as vis reflexões não mais eram possíveis, uma vez que tudo isto havia culminado em uma incapacidade de concentrar-se em qualquer coisa que fosse por mais de segundos, em contraponto com o seu olhar que era fixo, outra vez ao nada.
Assim morreu a mulher condenada por misantropia. Misantropia ao mundo e a si mesma. Misantropia que a levara ao distúrbio mental da alucinação. Distúrbio que a levara ao disparate de frases como “O fim do Homem faz-se necessário!”, “Urge extinguir isto que hoje pensa reinar sobre a terra!”, “Ainda não é tarde para por em queda o império devastador do cimento, da ciência e do medo!”.
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