quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Não o sei

                                                        José Selgas
 
Que súbita vontade
me anunciam os desvios
que em ti minha inquietude vê?
Por que baixas os olhos
ao encontrar o fogo dos meus?
        Dize, por quê?

— Meu coração sondo
e nele meu afã adverte
que teme e duvida e crê…
Ou esperança ou desejo,
não sei o que n'alma sinto ao ver-te…
        Não o sei.

— O pensamento vão
por acaso fingia-me
a dita que sonhei?
Diz-me, por que tua mão
treme impaciente ao estreitar-se à minha?
        Diz, por quê?

— Se a água azul se move
do ar ao suave suspiro
toda tremer se vê,
Serei eu a onda leve?
Poderás tu ser a rajada do vento?
        Não o sei.

— Quando em meus olhos brilhas
e vejo em ti a aurora
do bem que imaginei,
por que de tuas bochechas
os brancos lírios o carmim colora?
        Diz, por quê?
 
— Também a alva, à passagem
do sol que a surpreende,
enrubescer se vê.
Sou eu a aurora por acaso?
És tu o raio que minha face acende?...
        Não o sei.
 
— O bem que me aliena
a ti meu amor confio…
Vã esperança foi?
Por que profunda pena
sentem a par teu coração e o meu?
        Diz, por quê?
 
— A alma que te adora
fingiu em risonho prisma
a dita que esperei.
Por que ao gozá-la agora
em fundo afã meu coração se abisma?...
        Não o sei.

— Nenhuma dita exista
das que o homem afana
onde a dor não esteja.
Por que, mentira triste!,
dita chamamos à dita humana?
        Não o sei.
 
«No lo sé». In: SELGAS, José. Poesías. 2 v. Madrid: A. Pérez Alarcón, 1882-1883. Traduzido do castelhano ao português por J. M. Machado.

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