terça-feira, 20 de março de 2018

Ele ainda não me quer como um raio de sol

...dez anos depois (5)

sonhos em technicolor
vida com açúcar e sem amor
paixões ressentidas e ressecadas
vontades de ser pato
heróis da negação/afirmação
sexo e sangue e tensão
ponto sem eterno retorno
toda a força racional pergunta
por que não ser pático?

(an)estesia
largo de apatia
perfume modal
asserção dual
arma descarregada
suicídio
atravesso o nada
quero meu espírito trágico livre
sem os preciosos palpites

não quero ser um raio de sol
                                    (não espere que eu chore
                                    (que eu minta
                                    (que eu sinta
                                    (que eu morra
                                    por Ti)
quero saber o que faz o sol com as flores
com as dores
e com meus ardores
pela vida





Interlúdio


...dez anos depois (4)

um tiro,
um corpo que cai,
um balde de mostarda,
um quadro:
dez anos depois,
ainda é cultura,
mas censuraram o corpo nu,
a criança
e sua arte.


Os seres e as coisas


...dez anos depois (3)

o ser-vivo continua coisificado,
a coisa continua a ser-mais-que-viva,
amamos objetos
e nos pomos a vender.

no mercado de conceito:
o eu-perfeito,
o ego-direito,
o desejo de ser sem defeito
ou com o defeito eleito;
liberdade e diversidade à venda,
(nos olhos a venda?)
fazendo-nos esquecer de nosso próprio fim.

o ser-humano, mera peça
objetos valem vidas
(especialmente se nas lojas tiverem bom preço),
nosso suor não vale mais que migalha,
nossa energia, trocada por tralhas.

ser-humano-coisa x objeto-deus
quando foi que isso se deu?
quando foi que você se vendeu?
quando a gente se rendeu?

o ser-humano nas prateleiras das agências de emprego,
filas de um abatedouro empresarial
(nada mais banal).

o ser-sem-vida, posto no altar.
idolatrar?
bora lá?
abortar singularidades
e pôr marcas e etiquetas em seu lugar?
trocar a ética ou ideais
por enlatados virtuais?





Panóptico, panfônico, pangráfico, pan..


...dez anos depois (2)

Observado em cada passo
sabem tudo que eu falo e faço.
Aquela sensação ainda no ar:
um desejo incontrolável de controlar
Sequestrado em cada momento
e vigiado, consumido – sem Fora, em um Dentro

Tenho medo do escuro,
mas quanto maior a luz,
maior a sombra...

Acabo por querer intensamente ter cada minuto de minha vida, cada centímetro de meu corpo, cada minúcia de minha subjetividade:
          controlada;
          vigiada;
          mensurada;
          esquadrinhada;
          localizada;
          identificada;
          racionalizada...

Eu sou a tele-tela que me vigia,
sou eu mesmo quem policia
(meus atos e pensamentos)
Na estrutura de cada corpo,
antes de nascer até morto,
entre a liberdade e a escravidão,
sinto um misto de segurança, resiliência e resignação....



À margem

...dez anos depois (1)

Continuo a não acreditar na ordem e progresso
     a não possuir um emprego, muito menos de sucesso
     a não ser tal vitorioso
     a não querer fazer parte desse jogo
     a não ter carro ou casa
     a não constituir família
talvez faça parte da maquinaria
mas se o sistema me engoliu:
                               - indigestão!


domingo, 18 de março de 2018

Ou...

Ou...

Quinta-feira,
no feudo,
memórias passam por mim.
Não sei, mas sinto:
ou saio
     dessa cidade
ou saio
     dessa saudade.




Máquina de tilintar

Hoje

Hoje
os copos de boteco
sobre a geladeira
emborcados em um suporte barato de metal
entraram em um agenciamento musical
com o ventilador
Num balaço muito tímido
compuseram uma máquina de tilintar
um devir de noite estrelada
em plena tarde de outono


Mon amour

Amor dionisíaco

Te amo mais
do que sou capaz
de lidar

Transborda

Sai pelos poros
e pulsa na pele

Não poder
transpirá-lo,
não poder
deixá-lo deslizar por tuas curvas
não poder
perfumar teu cabelo
me faz fou...

Fazer o quê?
paixão, páthos, paciência...


quarta-feira, 7 de março de 2018

Borboletas

Psicotécnico de poeta

Borboletas,
que habitam dos exteriores mais longínquos da Terra
ao interior mais íntimo de meu estômago,
a revirá-lo em suas mil cores

Borboletas,
tipo que erra
e no âmago
poetiza flores
e poliniza palavras e amores

Borboletas,
que levam versos
e tornados em suas asas

Borboletas,
que, no fundo,
borboleteiam o mundo.


sábado, 3 de março de 2018

ainda

cedo

ainda era cedo
ainda era cedo quando me punçou a dor

sob meus pés
esmagava a flor
triturava meu sonho tão mesquinho
reduzia a pó o que sonhei sozinho

ainda era cedo
quando notei que estava à beira do abismo
abismo que cavei com meus próprios pés

já não sabia se parava a dança
já não sabia se encarava o abismo
já não sabia se arava a terra um pouco mais
já não sabia se amparava o medo
com aquela velha canção de ninar
ainda era cedo

ainda era cedo
cedo demais para dormir
embora o sono me queria suspender o corpo


guerra do golfo

(in)digestão

apenas queria sentir algo que não a mim mesmo.
um sentir a mim mesmo como outra coisa.
aí me pergunto
ao perceber que assim me sinto
que vida levo eu.
valeria ela ser revivida infinitamente
em cada laceração
e cada sorriso
e cada abraço
perdido
em cada lágrima
de letícia
de tristura
em cada sim
em cada não
em cada grandioso festim da carne
e d'alma
e em cada esfacelamento da cara no asfalto dos planos frustrados.
não sei se ainda posso responder com a confiança
de quem já disse sim sem titubear
não sei tampouco se digo um não
e viro o leme noutra direção
ou
ainda
se apago as dois pontos da reticências do futuro
e apenas ponho um ponto
final e duro...
não
sei
bem que fazer

paradoxo amical

ontem

quando te vi
quando me viste
quando tu sorriste
quando nos abraçamos
foi como se o tempo já não importasse
e importasse muito
o tempo e a distância fundiram-se numa alegria vívida de uma saudade satisfeita
e nesse momento sublime
o tempo parecia
estranhamente
ao mesmo tempo
já não fazer diferença
pois era como se eu te houvesse visto a tão pouco tempo
anteontem talvez
falamo-nos
e olhamo-nos
e rimo-nos como fosse anteontem a última vez que nos falamos e olhamos e sorrimos
o tempo importava tanto
e importava tão pouco
um paradoxo
sim
um paradoxo
mas
eu sentia que era nada mais
nada menos
que amor
um doce amor louco
de quem se ama silente num olhar trocado
num sorriso roubado
num abraço apertado de despedida
para outro hiato de sabes lá quanto tempo
porém
ontem
isso não importava
certamente não
absolutamente
o presente
nós
presentes um ao outro
um na companhia do outro
nós
um presente cuja sensação ainda sibila sobre minha pele
ainda perfuma meus olhos
ainda cintila em meus ouvidos
nós
sussurrado encontro
que
ainda que fosse o último de uma vida
seria o primeiro duma eternidade
eternidade dum momento que valeria a uma viva ser vivida
de novo
e de novo
e de novo
e...