domingo, 30 de agosto de 2020

Obscenidade

Eis o obsceno: a sensibilidade
(e ainda a beleza) sem rugosidade,
lisa, lisa, lisa — de ambos os lados!
Um lago congelado,
um coração de vidro:
duro, transparente e frágil.
Sem pudor, sem poder e sem pedir
escancara e dissimula tudo e todos
ao olhar ressequido
que já não pisca,
à boca seca
que já não saliva,
à barriga — flácida ou dura —
que já não consegue comer.
Eis o obsceno: a sensibilidade
mal-educadal
e sem fastio.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Olhos

Lamento não te haver escutado
chegar,
chamar,
falar,
calar,
partir.

Bem sabes que tenho essa mania,
esse defeito,
esse mau hábito
— se quiseres assim —
de mergulhar-me em mim,
como se em mim
houvesse as profundezas de um mar,
como fora minh'alma um pego
de sentimentos,
de pensamentos,
de vazios.

Trata-se dum hábito (quase) sem sentido,
eu sei,
tu sabes,
já que cada qual
é não mais que uma poça d'água;
uma poça rasa,
de chuva ligeira,
ao olhos profundos das divindades,
estes olhos de oceano.

domingo, 2 de agosto de 2020

Variação sobre o mesmíssimo tema

Canção da Clausura


Tua terra tem clausuras
onde canta o sabiá;
as aves que cá gorjeiam
já não sabem o que é voar.

Tua terra tem clausuras
onde sobrevoam urubus;
as aves que cá corvejam
soam a tristes cururus.

Breve

Questão (de) física


Perder a medida
Até, apenas, restar
A grandeza

Outra safra

Plantio

I


Plantaste saudades
Em meus cachos;
Reviro-os para ver
O que acho
E o que há
É amor
Brotado
Numa flor.

II


Flor empobrecida
Em meus versos,
Sinceros, singelos
E tão tersos
Quanto são
Introversos.

III

Perdoa-me se torno árida,
Com minhas rimas ressecadas,
A terra de teu plantio;
Se faço imagem pálida,
Com palavras desesperadas,
De tua colheita febril.


Decâmeron [incompleto]

Sementes de Saudade


I


Plantaste amor
Em meus cachos.
Reviro-os e acho
Senão uma flor.

Sopro cada semente.
Cheias de saudade,
De cidade em cidade,
Levam memórias da gente.


II


Teu sorriso,
Plantado em meu sonho,
Brotou em minha face.
Foi-me suficiente
Para regar a saudade.


III


Teus olhos me sorriem
Um sorriso pôr-de-sol;
Amanheço na saudade gaia
Dessa lembrança de arrebol

IV


Aspiro o pólen
Da saudade do que não foi,
Da lembrança do que eu não vivi,
Do pensamento em nós.

V


Minha pequena
Saúde,
Sandice,
Saudade,
Semente.

VI


À beira do rio,
Um fio de luz
Entre nuvens escapa
Desenhando n'água
Minha saudade:
Tua amizade

[...]

X


Dou-te estes versos
Para que, feito semente,
No ar dispersos,
No coração que saudade sente
A cada noite a cada dia,
Medrem em alegria.

Ridiculamente digo:

Gente que ama de verdade não escreve poemas de amor


Gente que ama de verdade
Não escreve poemas de amor.
Quem ama de verdade
Senta sobre o amor
Como fosse um trono de pedra
Ou senta sobre as próprias pernas.
Assim é a gente direita, direta e certa.

Gente desviada, desvairada e tola
Ama um amor mentiroso -
Amor inventado
Com cheiro de carne e osso -;
Ama um amor mentiroso -
Amor inventado
Com textura de sangue, vinho e gozo.

Nem etéreo nem eterno,
Um amor sério e gozado;
Nem líquido nem liquidado,
Um amor...
Nem ovo nem inovado
Um amor que repete e repete e repete e repete e repete e repete...
E pede de novo por uma artesania
Que não é nem do mais eficiente
Nem do mais complacente
Nem do mais potente
Nem do mais ideal
Nem do mais carente
Nem do mais caro
Nem do mais amor.
Artesania dum amor que não é amor,
Mas um gesto de amar,
Sempre a lembra e a esquecer,
A apagar e a reescrever o que é,
Feito perpétuo cuidado de forjar,
O amor mais bonito que há.

Rabisco sem esperança:

Bem-aventurança


Bem-aventurados aqueles
que podem, ainda,
crer na providência divina,
            ...ou na que seja.

sábado, 1 de agosto de 2020

Canção do Asilo

Tua terra tem clausuras,
onde chora o sabiá;
as aves, que aqui corvejam,
já não auguram o que virá.

A ensimesmar-me, sozinho à noite,
já nenhum prazer busco eu cá;
tua terra tem clausuras,
onde chora o Sabiá.

Bem sei dos desprimores
que tais não encontro eu cá;
coleirinhos, sabiás-laranjeiras
e tico-ticos no fubá
que já não têm palmeiras
sobre as quais pousar por lá.

Em cismar — sozinho, à noite —
com o bendito sabiá,
já nem a pega que amei
alenta-me agora cá.

Não permita o Caos que morra,
sem que um dia eu piose lá;
sem que possa o trinca-ferro,
— onde chora o sabiá —
bem-fadar por onde erro
no asilo que, oxalá, me chegará.

Notas (casi) linguísticas

#1

Sutileza abisal


Vaya graciosa la sutileza esa de la lengua portuguesa que, al diferenciar «esperto» (listo/sabio) de «experto» (experto) con no más que una letra, los apartan de cualquier sinonimia posible, abren un abismo en la etimología común; salvo, quizás, si acercáramos el experto del «espertinho» (listillo) o del «espertalhão» (sabihondo), sin embargo, en ese caso diminutivo y aumentativo harían, aristotélicamente, una aproximación por el vicio, jamás por la virtud de las palabras.

Do balcão

Café da Tarde


Era verão. Lá fora, sensação térmica de 37°C ao sol. Aqui dentro, tentava refrescar-me à sombra, sentado no balcão coberto de meu apartamento, tomando meu café da tarde. Não podíamos sair. Ou melhor, não devíamos sair, assim sugeriam as autoridades. Devíamos quedar-nos em casa, assim sugeriam os expertos. Devíamos quedar-nos à sombra, assim sugeria o sol, pródigo de seu calor e seu brilho, em um céu cerúleo, sem qualquer nuvens. No outro lado da rua, no balcão sem cobertura de um apartamento alguns andares acima do meu, onde também secavam algumas roupas, quedava-se uma mulher apoiada no parapeito. Ela acendeu um cigarro. Ela fez círculos com a fumaça. Ela pôs a cinza no cinzeiro. Ela olhou-me. Ela não falou comigo. Eu a olhei. Não falei com ela. Assim seguimos. Solitário. Silentes. Separados. Pela rua. Pelo ar quente. Pelo céu liso e lânguido. Pelas recomendações. Pela clausura. Separados por um desconhecimento mais inabalável que a decidida ação da gravidade sobre as gotas de suor que escorriam de minhas têmporas. E que também escorria na face da estrangeira figura do outro lado da rua. Eu podia vê-lo. Ela terminou o cigarro. Ela levantou-se. E partiu. Sem uma palavra. E eu. Eu tomei minha cabeça em minhas mãos e senti como se aquele momento, com aquela pessoa, fosse o instante mais íntimo que eu jamais teria por um longo tempo. Por um átimo de tempo, ínfimo e fugaz, eu o cri. Eu criei e cultivei esse diminuto grão de sentimento. Foi o momento mais esplêndido na história universal, ao menos enquanto morei neste apartamento. Mas foi só um momento. E esse grânulo de intimidade teve morrer.