quinta-feira, 21 de junho de 2018

j. prévert endommagé

uma cação das mais curtas
[ou il ritornello]

O pássaro que canta em minha cabeça
A repetir que te amo
A repetir que me amas
O pássaro que canta em minha cabeça
E seu infatigável refrão
E seu eterno refrão
Eu me mataria antes de matá-lo

terça-feira, 5 de junho de 2018

e eu que...


[nu de palavra]

e eu que tanto escrevi
em prosa e poesia
não pude escrever
e descrever
o que sinto e sentia
não pude fazer sentir
o amor que amo

e eu que tanto senti
em prosa e poesia
não pude
e talvez nunca possa
fazer sair isso de mim
isso que nem é interioridade
isso que
feito flecha
me atravessa
feito faca
me corta a carne
porque é amor de corpo e alma
(gêmea)
mas alma de carne e osso

e eu que sou como sou
que carrego o peso duma arte que não me basta
que é minha glória
e minha desgraça

e eu que sou assim
não pude escrever um poema sequer
capaz de fazer sentir
que amo esse amor
desmedido
e de pura grandeza
frágil
e de pura fortaleza
esse amor
desarrazoado
e arrasado pela incompreensão
que eu mesmo criei
por amar assim
um amor que vale a vida
(no instante entre o sopro
e o apagar da vela)
neste instante vale
minha vida
sem metáfora,
pois literal
sem hipérbole,
pois transbordante
sem parábola
pois amoral

e eu que só queria falar
deste amor
pô-lo em três ou quatro versos
escrevê-lo em poucas palavras
tornei-me alguém mudo
[nu de palavra]

e eu que só queria poder
dar tal poema como um singelo presente
versado
descobri-me incapaz
e mais
descobri que pessoa alguma sabia senti-lo
e que por fim
eu parecia o pior dos amantes
um pueril apaixonado a pisar em corações

doía
doía
doía
e ainda dói
saber disso doía
porque eu amava
esse amor
num grau
num jeito
numa intensidade
numa...
[nu de palavra]
eu amava
dum jeito tão...
[nu de palavra]
que nenhum outro amor não me parecia capaz
de tocar
de abalar
de atingir esse amor
que eu amava
sem fazer dele algo ainda maior
mais vivaz
florido
e festivo

e eu que só queria amar assim
e poder fazer sentir
esse amor que eu amava
chorei
por meu fracasso
por minha ruína

e eu que tanto escrevi
em prosa e poesia
já não podia falar
desse amor
que eu amava
(e que ainda amo)
doutro jeito que
um gaguejante:
je
jej
jejet
jet
jetje
jettez
je t'ai
j'ai te...
[nu de palavra]
num singelo:
[respiro]
je t'aime passionnément!

sábado, 2 de junho de 2018

Arte em...


Ruínas [2]
a h. p. z.

é claro que sempre,
onde houver vida,
haverá resistência.

mas se antes havia cem,
duzentas,
trezentas pessoas a se manifestar,
agora,
elas não somam uma dúzia.

a deterioração dos espaços artísticos,
ela é concomitante à deterioração de nossa subjetividade.

cotidianamente expostos a esses lugares em ruína,
nossa própria sensibilidade,
arruinada,
passa a subsidiar uma autocensura que,
sem pudor,
nos diz que já não há valor na arte,
que é (quase) imoral ser artista
e que nossa energia deve ser conservada para o consumo e a produção daquilo que é:
útil!